sábado, 10 de outubro de 2009

Amarelo Sangue



Já anoiteceu.
O interior da casa é aconchegante.
A sala de estar faz também as vezes de biblioteca e possui uma estante enorme de carvalho repleta de livros, a grande maioria antigos mas em excelente estado.
A frente do móvel, um homem corpulento admira a coleção a sua frente com os braços cruzados para trás e uma expressão de contentamento.
A campainha toca e ele caminha até a porta.
- Sim?
- Sr. Dario? - pergunta o motoboy conferindo o nome numa nota fiscal.
- O próprio, em carne e osso. Aliás, bem mais carne...
- Ahnnn... ah, sim. Encomenda pro Sr., assine aqui, aqui, aqui e aqui, por favor.
- Pois não...
Resolvido os trâmites legais:
- Aqui está.
Os olhos do homem até brilham ao pegar o pacote, cujas dimensões deixam explícito seu conteúdo: um livro.
- Mas rapaz,vocês são rápidos no gatilho mesmo, fico impressionado toda vez...
- Ora, obrigado, não é mais que nosso dever...
- Você me parece um tanto nervoso, algum problema?
- Ah, um pequeno imprevisto no caminho, quase fui pra m.... quase sofri um acidente na entrada da cidade.
- Que coisa... você não gostaria de entrar um pouco e se recompor? Tomar um refrigerante, usar o banheiro? Na verdade, eu insisto. Entre, vamos!
Hesitante, o entregador obedece. "Preciso mesmo dar uma mijada... e o cara não leva jeito de veado, deve ser a tal hospitalidade mineira de que tanto falam...".
Já dentro da casa:
- O banheiro é logo ali, fique a vontade.
Na sala de estar o homem abre cuidadosamente o pacote, até que o livro se revela: Capa amarela, título em italiano, mais de trinta anos de idade.
Quando o motoqueiro volta do banheiro, encontra o livro sendo folheado e cheirado por seu novo dono, praticamente num estado de pré-extase. Ele demora um pouco para perceber que seu convidado retornara a sala, e não se emcabula por ter sido flagrado naquela situação infantilmente ridícula.
- Livros... são minha paixão. Este é o último da coleção. Especial.
- Eu imagino, só pelo preço que o Sr. pagou por ele...
- Ah, pois eu pagaria até mais, e me arriscaria mais também. Este é o último Giallo que me faltava.
- Gi o quê?
- Giallo. Amarelo em italiano. Faz parte de uma série de livros baratos lançados a décadas atrás na Itália, tendo como característica principal a capa amarela. Como eu disse, só me faltava este.
- Legal...
- É, legal.
- Me disseram para ter um cuidado especial com essa entrega. Na verdade, dizem isso pra todas as entregas, mas nessa eu senti que a coisa era realmente séria. O Sr. Fulcci disse que durante o leilão receberam várias ameaças, me parece que houve até uma tentativa de roubo...
- Sim, até onde eu saiba não há mais nenhum exemplar deste aqui. Pelo menos não a venda por aí, e de que outra maneira você encontra algo assim, não é mesmo?
- Pois é... Bem, já vou indo então, agradecido por me deixar usar o banheiro.
- Não há de quê. Vai ficar hospedado em algum hotel da cidade?
- Não, volto para São Paulo hoje ainda.
- Pois então tome um gole de café, pra te deixar alerta.
- OK, eu aceito.
Os dois dirigem-se para a cozinha.
- Mas onde foi que a empregada guardou tudo?
- Hahahahah... é assim mesmo - ri o rapaz percebendo o quanto o homem parecia perdido em seu próprio habitat, procurando as coisas. - Antes de passar aqui eu fui até a sua loja no centro da cidade, falaram que as vezes o Sr. ficava por lá até mais tarde.
- Sim, mas agora que estou me retirando do negócio tenho ficado preguiçoso...
- Por sorte eu tinha este endereço residencial também...
- Sim, muita sorte. Na verdade, eu contava com isso...
- Hã?
- Nada não... aqui seu café, sente-se. É instantâneo, espero que não se importe.
- Claro que não, está ótimo.
- Mas, como eu disse, estou deixando os negócios.
- Ah é? Mas o Sr. não parece em idade de se aposentar. Nossa, café forte!
- A questão não é essa. O que eu precisava para me "aposentar", como você mesmo falou, eram duas coisas: Completar minha coleção de Giallo's e um substituto. Ou bode expiatório, para ser mais exato - essa última parte só foi dita quando o homem observou que a alta dose do potente relaxante muscular misturado ao café já estava fazendo efeito no motoboy, que sentia as pernas tão pesadas que mal podia movê-las. Além disso, seus lábios, dedos e peito formigavam. A cabeça estava leve, e ele não conseguia falar. Mas até então ouvia bem.
- Eu cheguei na cidade pouco antes de você. Quando tentei roubar o livro não obtive sucesso, mas tive acesso a lista de todos que deram um lance. Pouca gente. Não foi difícil descobrir o vencedor do leilão, sua empresa está cheia de gente desonesta que passa qualquer tipo de informação por uma quantia quase irrisória. O Sr. Fulcci devia escolher melhor seus funcionários... Na verdade, eu mesmo poderia ter dado o lance final, mas qual seria a graça nisso? Já estou pegando prática em conseguir meus livros assim, sujando as mãos de sangue. O Sr. Dario está morto na loja dele. A última coisa que viu foi minha luva de couro preto empunhando uma navalha afiadíssima que se pôs a dilacerar seu rosto e pescoço.
O homem sorri. Um sorriso normal, o que tornava tudo muito mais assustador. Ele veste suas luvas.
- Peguei um souvenir dele, que eu vou deixar com você para quando a polícia chegar. - o homem sacode uma orelha na frente do rosto do rapaz, antes de guardá-la no bolso de sua jaqueta de motoqueiro, junto da navalha ainda suja de sangue e as chaves da casa. - Isso liga você ao crime. Também vou por fogo naquela estante lá na sala. Uma bela coleção, mas tudo figurinha repetida. A última do álbum, a carimbada vai em segurança comigo. Tchau.

De seu estado paralisado, o motoboy ouve os passos do homem se afastando. Ele tenta se levantar, mas acaba caindo deitado de lado no chão frio da cozinha. Ele ainda escuta o fogo crepidando na estante da sala, muita falação do lado de fora da casa depois de algum tempo e uma sirene se aproxiamando. Estava realmente encrencado.

Bem mais tarde, no carro, o homem dirije satisfeito de volta para casa. Em alguns trechos, o sorriso em seu rosto aumenta e ele acaricia o livro ao seu lado, no banco do passageiro.

FIM

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