sábado, 31 de outubro de 2009

Diário de Rorschach



Compilação na íntegra do Diário do Rorschach, um dos meus personagens favoritos de WATCHMEN.





12 de outubro de 1985
Carcaça de um cão morto no beco hoje de manhã com marcas de pneu no ventre rasgado. A cidade tem medo de mim. Eu vi sua verdadeira face. As ruas são sarjetas dilatadas cheias de sangue e, quando os bueiros transbordarem, todos os vermes vão se afogar. A imundice de todo sexo e matanças vai espumar até a cintura e as putas e os políticos vão olhar para cima gritando “salve-nos”… e eu vou olhar para baixo e dizer “não”. Eles tiveram escolha, todos. Podiam ter seguido os passos de homens honrados como meu pai ou o presidente Truman. Homens decentes, que acreditavam no suor do trabalho honesto. Mas seguiram os excrementos de devassos e comunistas sem perceber que a trilha levava a um precipício até ser tarde demais. E não me digam que não tiveram escolha. Agora o mundo todo está na beira do abismo contemplando o inferno e os liberais, intelectuais e sedutores de fala macia… de repente não sabem mais o que dizer.


13 de outubro de 1985
Dormi o dia todo. Acordei às 16:37, com a senhoria reclamando do cheiro. Ela tem cinco filhos de cinco pais diferentes. Deve enganar a previdência social. Logo vai anoitecer. Lá embaixo a cidade grita como um matadouro cheio de crianças retardadas. Nova York. Sexta à noite um comediante morreu em Nova York. Alguém sabe por quê. Lá embaixo… alguém sabe. O crepúsculo fede a fornicação e más consciências. Acho que vou me exercitar.


Primeira visita da noite infrutífera. Ninguém sabia de nada. Sinto-me deprimido. A cidade está morrendo de hidrofobia. Será que só consigo limpar a baba da sua boca? Jamais se desesperar. Jamais se render. Deixo as baratas humanas discutindo heroína e pornografia infantil. Tenho assuntos a tratar com outra classe de pessoas.


20:30. Encontrar Veidt me deixou um gosto ruim na boca. Ele é mimado e decadente. Traiu até mesmo suas próprias hipocrisias liberais. Talvez homossexual? Devo me lembrar de investigar mais. Dreiberg não fica atrás. Um fracassado lamuriando-se no porão. Por que restam tão poucos de nós na ativa e sem desvios de personalidade? O primeiro Coruja é dono de uma oficina. A primeira Espectral é uma puta velha e inchada morrendo num asilo na Califórnia. Capitão Metrópolis foi decapitado num acidente de carro em 1974. O Mariposa está num hospício no Maine. Silhouette aposentou-se em desgraça. Foi morta seis semanas depois por alguém querendo vingança. Dollar Bill foi baleado. Justiceiro Encapuzado sumiu em 55. O Comediante está morto. Só restam dois nomes na minha lista. Ambos moram no Centro Rockefeller de Pesquisas Militares. Eu vou até eles. Vou avisar o homem indestrutível que alguém planeja matá-lo.


23:30. Sexta à noite um comediante morreu em Nova York. Jogado pela janela. Quando atingiu a calçada, a cabeça dele entrou no estômago. Ninguém liga. Ninguém além de mim. Será que eles estão certos? Logo vai haver guerra. Milhões vão queimar. Milhões vão perecer de doença e miséria. Por que se importar com uma morte? Porque existe o bem e o mal, e o mal tem de ser punido. Mesmo à beira do fim, isso não vai mudar. Mas muitos merecem punição… e há tão pouco tempo.


16 de outubro de 1985.
Rua 42: seios nus se esparramam de todos os outdoors, de todos os cartazes, sujando a calçada. Me ofereceram amor sueco e amor francês… mas não amor americano. Amor americano; como Coca em garrafas de vidro verde…eles não fazem mais. Pensei na história do Moloch a caminho do cemitério. Pode ser mentira. Parte de uma vingança planejada durante uma década atrás das grades. Mas, se for verdade, o que significa? Referência intrigante a uma ilha. Também ao Dr. Manhattan. Será que ele corre perigo? Tantas perguntas. Tudo bem. Respostas em breve. Nada é insolúvel. Existe esperança. Enquanto houver vida. No cemitério, cruzes brancas se enfileram, marcas de giz numa lousa gigante. Faço última visita em silêncio, sem alarde. Edward Morgan Blake. Nascido em 1924. Comediante por 45 anos. Falecido em 1985, enterrado na chuva. É o que acontece conosco? Uma vida de conflitos sem tempo para amigos… e no fim só nossos inimigos deixam rosas. Vidas violentas terminando violentamente. Dollar Bill, Silhouette, Capitão Metrópolis… nós nunca morremos na cama. Não é permitido. Algo da nossa personalidade, talvez? Algum impulso animal para lutar e se debater, fazendo de nós o que somos? Não é importante. Fazemos o que deve ser feito. Outros enterram a cabeça entre as tetas inchadas da indulgência e da gratificação, leitões procurando abrigo debaixo de uma porca… e o futuro se avista como um trem expresso. Blake entendia. Tratava tudo como piada, mas entendia. Ele viu as rachas na sociedade. Viu os homenzinhos de máscara tentando remendar tudo… Ele viu a verdadeira face do século 20 e escolheu se tornar um reflexo, uma paródia desses tempos. Ninguém mais viu a piada. Por isso a sua solidão. Ouvi uma piada uma vez: Homem vai ao médico. Diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto. Médico diz: “Tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade. Assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo.” Homem se desfaz em lágrimas. E diz: “Mas, doutor… eu sou o Pagliacci.” Boa piada. Todo mundo ri. Rufam os tambores. Desce o pano.




21 de outubro de 1985.
Saí da casa de Jacobi às 2:35. Ele não sabe nada sobre a tentativa de desacreditar Dr. Manhattan. Foi apenas usado. Por quem? Russos parecem a escolha óbvia: Manhattan e Comediante eram figuras militares importantes. Mas Comediante falou de uma ilha, artistas e escritores vivendo nela. Não se encaixa. Não consigo me concentrar. Cansado demais. Sem dormir desde sábado. Andei pra casa passando por latas de lixo cheias de rumores de guerra, analisando fatos; corpos; motivos… aguardando um lampejo de clareza no mar de sangue.


Acordei às onze com gritos lá fora. Perturbado por ter adormecido sem remover a pele da cabeça. Mais cansado do que imaginava. Devo ter mais cuidado. Do outro lado da rua, garotos com spray desfiguravam prédio abandonado. Memorizei feições e me preparei para o trabalho. Primeiro tirei meu rosto, dobrei e guardei no casaco. Sem face, ninguém me conhece. Ninguém sabe quem sou. Ao sair do quarto, encontrei a senhoria. Queixas de sempre: higiene e aluguel. Havia marcas de chupada no pescoço gordo. Recentes. Ela me lembra minha mãe. Na rua, inspecionei o prédio desfigurado: silhueta na porta, homem e mulher, possivelmente em preliminares sexuais. Não gostei. Faz porta parecer assombrada. Na 40a com a 7a, vi Dreiberg e Juspeczyk saindo do Gunga Diner. Um caso, talvez? Será que Juspeczyk arquitetou exílio de Manhattan a fim de abrir caminho para Dreiberg? Ela também odiava o Comediante. Devo investigar. Entrando no Diner, pedi café e me sentei olhando minha caixa de correio do outro lado da rua. Transeuntes fizeram vários depósitos: papel de bala, jornais, um par de tênis estrangulado pelos próprios cadarços, línguas pendendo horrivelmente. Esta cidade é um animal feroz e complicado. Para entendê-la eu leio seus dejetos, seus aromas, o movimento de seus parasitas… Sentei olhando o lixo e Nova York abriu seu coração.


Alguém tentou matar Veidt. Prova a teoria do “matador de mascarados”. O assassino fecha o cerco. Verifiquei mensagens. Bilhete de Moloch. Relacionado talvez? Depois fui recolher rosto no beco. Em frente ao Utopia, polícia prendeu um viciado em KT-285. Estava gritando alguma coisa sobre o presidente Nixon. Sobre bombas. Será que todos enlouqueceram menos eu? Sobre a 40a, um elefante flutuava. Acima dele, satélites espiões invisíveis. Se eles estreitarem seus olhos de vidro, todos vamos morrer. Mundo implacável. Só há uma resposta sadia para ele. O beco estava frio e deserto. Minhas coisas estavam onde eu havia deixado. Esperando por mim. Colocando-as, abandonei o disfarce e voltei a ser eu mesmo, livre do medo, da fraqueza ou do desejo. Meu casaco, meus sapatos, minhas luvas imaculadas. Meu rosto. Tenho três horas antes de encontrar Moloch. Mais adiante, ouvi grito de mulher, primeira nota balbuciante do coro noturno da cidade. Me aproximei. Uma tentativa de estupro/assalto/ambos. Pigarreei. O homem se virou e havia algo gratificante no seu olhar. Às vezes à noite é generosa comigo.


1 de novembro de 1985.
Último registro? Saímos do escritório de Veidt quase meia-noite. Dreiberg, convencido de que Veidt está por trás de tudo, fala sério em visitar a Antártica. A nave dele aparentemente tem condições, mas e nós? Veidt. Não imagino oponente mais perigoso. Se a jornada for possível, rastreá-lo ao seu covil é a única opção. Mas me sinto intranqüilo. Território desconhecido… Ele poderia nos matar na neve. Ninguém jamais saberia… Primeira noite de novembro. Estou com frio. Escritórios abaixo, lajes marcando diariamente milhares de túmulos. Dentro, nos mostradores dos relógios, tão visados quanto celebridades, os ponteiros iniciam as voltas finais. O fim vem a galope, favorecendo a espora, poupando as rédeas. Acho que vamos tombar logo. Veidt é mais rápido do que Dreiberg. Talvez mais do que eu. Voltar da missão parece improvável. Última anotação. Vou mandar o diário aos únicos em quem confio. Digo a Dreiberg que preciso checar minha caixa postal. Ele acredita. Quer eu esteja vivo ou morto, se você estiver lendo isso agora vai saber da verdade: seja qual for a natureza desta conspiração, Adrian Veidt é o responsável. Esforcei-me para ser compreensível. Acredito que tracei um quadro aterrador. Apreciso seu apoio recente e espero que o mundo sobreviva até isto chegar às suas mãos, mas tanques estão em Berlim oriental e o fim está próximo. Quanto a mim, de nada me arrependo. Vivi a vida sem concessões… e agora avanço rumo às sombras sem me queixar. RORSCHACH, 1 de novembro de 1985.

sábado, 10 de outubro de 2009

Amarelo Sangue



Já anoiteceu.
O interior da casa é aconchegante.
A sala de estar faz também as vezes de biblioteca e possui uma estante enorme de carvalho repleta de livros, a grande maioria antigos mas em excelente estado.
A frente do móvel, um homem corpulento admira a coleção a sua frente com os braços cruzados para trás e uma expressão de contentamento.
A campainha toca e ele caminha até a porta.
- Sim?
- Sr. Dario? - pergunta o motoboy conferindo o nome numa nota fiscal.
- O próprio, em carne e osso. Aliás, bem mais carne...
- Ahnnn... ah, sim. Encomenda pro Sr., assine aqui, aqui, aqui e aqui, por favor.
- Pois não...
Resolvido os trâmites legais:
- Aqui está.
Os olhos do homem até brilham ao pegar o pacote, cujas dimensões deixam explícito seu conteúdo: um livro.
- Mas rapaz,vocês são rápidos no gatilho mesmo, fico impressionado toda vez...
- Ora, obrigado, não é mais que nosso dever...
- Você me parece um tanto nervoso, algum problema?
- Ah, um pequeno imprevisto no caminho, quase fui pra m.... quase sofri um acidente na entrada da cidade.
- Que coisa... você não gostaria de entrar um pouco e se recompor? Tomar um refrigerante, usar o banheiro? Na verdade, eu insisto. Entre, vamos!
Hesitante, o entregador obedece. "Preciso mesmo dar uma mijada... e o cara não leva jeito de veado, deve ser a tal hospitalidade mineira de que tanto falam...".
Já dentro da casa:
- O banheiro é logo ali, fique a vontade.
Na sala de estar o homem abre cuidadosamente o pacote, até que o livro se revela: Capa amarela, título em italiano, mais de trinta anos de idade.
Quando o motoqueiro volta do banheiro, encontra o livro sendo folheado e cheirado por seu novo dono, praticamente num estado de pré-extase. Ele demora um pouco para perceber que seu convidado retornara a sala, e não se emcabula por ter sido flagrado naquela situação infantilmente ridícula.
- Livros... são minha paixão. Este é o último da coleção. Especial.
- Eu imagino, só pelo preço que o Sr. pagou por ele...
- Ah, pois eu pagaria até mais, e me arriscaria mais também. Este é o último Giallo que me faltava.
- Gi o quê?
- Giallo. Amarelo em italiano. Faz parte de uma série de livros baratos lançados a décadas atrás na Itália, tendo como característica principal a capa amarela. Como eu disse, só me faltava este.
- Legal...
- É, legal.
- Me disseram para ter um cuidado especial com essa entrega. Na verdade, dizem isso pra todas as entregas, mas nessa eu senti que a coisa era realmente séria. O Sr. Fulcci disse que durante o leilão receberam várias ameaças, me parece que houve até uma tentativa de roubo...
- Sim, até onde eu saiba não há mais nenhum exemplar deste aqui. Pelo menos não a venda por aí, e de que outra maneira você encontra algo assim, não é mesmo?
- Pois é... Bem, já vou indo então, agradecido por me deixar usar o banheiro.
- Não há de quê. Vai ficar hospedado em algum hotel da cidade?
- Não, volto para São Paulo hoje ainda.
- Pois então tome um gole de café, pra te deixar alerta.
- OK, eu aceito.
Os dois dirigem-se para a cozinha.
- Mas onde foi que a empregada guardou tudo?
- Hahahahah... é assim mesmo - ri o rapaz percebendo o quanto o homem parecia perdido em seu próprio habitat, procurando as coisas. - Antes de passar aqui eu fui até a sua loja no centro da cidade, falaram que as vezes o Sr. ficava por lá até mais tarde.
- Sim, mas agora que estou me retirando do negócio tenho ficado preguiçoso...
- Por sorte eu tinha este endereço residencial também...
- Sim, muita sorte. Na verdade, eu contava com isso...
- Hã?
- Nada não... aqui seu café, sente-se. É instantâneo, espero que não se importe.
- Claro que não, está ótimo.
- Mas, como eu disse, estou deixando os negócios.
- Ah é? Mas o Sr. não parece em idade de se aposentar. Nossa, café forte!
- A questão não é essa. O que eu precisava para me "aposentar", como você mesmo falou, eram duas coisas: Completar minha coleção de Giallo's e um substituto. Ou bode expiatório, para ser mais exato - essa última parte só foi dita quando o homem observou que a alta dose do potente relaxante muscular misturado ao café já estava fazendo efeito no motoboy, que sentia as pernas tão pesadas que mal podia movê-las. Além disso, seus lábios, dedos e peito formigavam. A cabeça estava leve, e ele não conseguia falar. Mas até então ouvia bem.
- Eu cheguei na cidade pouco antes de você. Quando tentei roubar o livro não obtive sucesso, mas tive acesso a lista de todos que deram um lance. Pouca gente. Não foi difícil descobrir o vencedor do leilão, sua empresa está cheia de gente desonesta que passa qualquer tipo de informação por uma quantia quase irrisória. O Sr. Fulcci devia escolher melhor seus funcionários... Na verdade, eu mesmo poderia ter dado o lance final, mas qual seria a graça nisso? Já estou pegando prática em conseguir meus livros assim, sujando as mãos de sangue. O Sr. Dario está morto na loja dele. A última coisa que viu foi minha luva de couro preto empunhando uma navalha afiadíssima que se pôs a dilacerar seu rosto e pescoço.
O homem sorri. Um sorriso normal, o que tornava tudo muito mais assustador. Ele veste suas luvas.
- Peguei um souvenir dele, que eu vou deixar com você para quando a polícia chegar. - o homem sacode uma orelha na frente do rosto do rapaz, antes de guardá-la no bolso de sua jaqueta de motoqueiro, junto da navalha ainda suja de sangue e as chaves da casa. - Isso liga você ao crime. Também vou por fogo naquela estante lá na sala. Uma bela coleção, mas tudo figurinha repetida. A última do álbum, a carimbada vai em segurança comigo. Tchau.

De seu estado paralisado, o motoboy ouve os passos do homem se afastando. Ele tenta se levantar, mas acaba caindo deitado de lado no chão frio da cozinha. Ele ainda escuta o fogo crepidando na estante da sala, muita falação do lado de fora da casa depois de algum tempo e uma sirene se aproxiamando. Estava realmente encrencado.

Bem mais tarde, no carro, o homem dirije satisfeito de volta para casa. Em alguns trechos, o sorriso em seu rosto aumenta e ele acaricia o livro ao seu lado, no banco do passageiro.

FIM