terça-feira, 29 de junho de 2010

O Vulto

Pele pálida, magro, olhar penetrante, capa preta, luvas de couro e uma comprida, afiada e reluzente lâmina prateada. O vulto era praticamente uma caricatura ambulante de um assassino de filmes de terror antigos. Seria engraçado se não fosse real. Com movimentos mecânicos e gestos teatrais ele atravessa a rua olhando para os lados. Esgueira-se entre um nicho e outro até que chega a casa. Por algum motivo sabe que há uma cópia da chave do portão no vaso a direita da porta. Ele a apanha e entra, sedento de sangue...


Janaína dirige de volta para casa após deixar as crianças na casa da sogra. "Finalmente um fim-de-semana de folga", pensa ela. Era sexta-feira e ela só voltaria para apanhar os meninos no domingo a tarde.
Fazia tempo que ela e o marido não tinham um tempo só para os dois. Passou no supermercado e comprou tudo o que precisava para o jantar especial que tinha planejado. Pedro, seu marido, ainda estava no trabalho e não sabia que seus filhos passariam dois dias fora, na casa de sua mãe. 
Tudo fazia parte de um complô de sua mãe e sua esposa para dar um fôlego novo ao casamento, tirar os dois um pouco da rotina...
Ela já estava quase chegando em casa quando o celular tocou. Era Pedro.
- Querida, más notícias...
- O que foi meu bem? (Não, hoje não...).
- Meu colega ligou, não vai poder vir assumir o plantão da noite... Vou ter que ficar no hospital cobrindo ele...
- ... que pena... (Merda!).
- Pois é, eu não posso pisar na bola com ele... Lembra que no mês passado ele segurou pra mim?
- Sim... e que desculpa ele (Filho da puta!) deu pra não vir?
- Não é desculpa não, ele vai ter que entrar numa cirurgia sem previsão pra acabar, me ligou perguntando se eu podia segurar algumas horas pra ele... Eu disse que ele podia deixar o plantão todo para mim, afinal não tinha nenhum compromisso para hoje mesmo.
- É, fez bem (Merda!).
- E as crianças?
- Tudo tranquilo.
- Bom, agora também são só mais essas doze horas e o fim de semana é nosso!
- Sim!
- Vou indo então amor, a enfermeira veio me avisar que as consultas estão acumulando. Te amo!
- Também te amo...
Janaína desliga o telefone. Minutos depois está em frente a sua casa. O portão eletrônico se abre ao seu comando e ela entra com o carro. Já está fechando a porta da sala quando ele encosta no chão novamente.
Entre as compras do supermercado havia uma garrafa de vinho que seria sua companheira essa noite. 
De taça na mão ela assiste ao jornal, seguido da novela. Depois coloca uma comédia romântica no DVD mas não consegue rir tão logo, só depois que o vinho sobe um pouco.


Por uma fresta na porta o vulto observa. Sua respiração é contida e seus passos leves. Ele não tem pressa, o tempo é e sempre será seu aliado. São anos de experiência, refinados a cada uma de suas "apresentações" como ele gostava de chamar para si mesmo seu passatempo sangrento.


Janaína sente uma corrente de ar frio passando por sua nuca. Não fosse a janela aberta na cozinha diria que estava mais para um presentimento do que para o vento propriamente dito. Ela fecha a janela e ruma para seu quarto. Senta-se na escrivaninha e liga o computador. Abre seu e-m@il, lê alguns, responde outros. O sono começa a bater... Ainda que essa noite seus planos tenham ido por água abaixo, amanhã cedo Pedro estaria de volta e poderiam sair para dar um passeio pela cidade, tomar um sorvete, namorar... Então, em meio a esses rompantes de adolescente apaixonada, surge uma ponta de arrependimento (seria isso?) por ter deixado os meninos com a avó. Se estivessem aqui, a essa hora ela provavelmente os estaria colocando no banheiro para escovar os dentes pra dormir, depois de algumas rodadas de videogame. Aquele vinho estava tão bom!


Quando a última luz se apaga o vulto sai de seu esconderijo e respira fundo. Era hora. Sua lâmina é afiadíssima, precisa e fria, muito fria. A última sensação de muitas pessoas foi ter gelo nas entranhas enquanto era rasgado de fora a fora, sem poder gritar pois tinha uma mão de aço tapando-lhe a boca. O sangue escorre, vísceras e orgãos são espalhados por toda a casa, carne humana é devorada com sofreguidão. O vulto está em êxtase.


Pedro liga para casa mas não atendem. Teve um pressentimento, um mau pressentimento, mas não era do tipo que dava importância para essas coisas. Tentou uma vez, outra e mais outra. A chegada de uma urgência no Pronto Socorro o impediu de tentar mais vezes. Não que fizesse diferença...


Saciado, o vulto deixa a casa. Sorrateiramente ele desliza pela rua até que desaparece, sem deixar nada de si para trás.


Cansado, Pedro chega em casa. O portão eletrônico se abre a sua frente. Ele entra e vai direto ao quarto das crianças, dar aquela espiadinha paternal básica. Os meninos não estavam ali. Nem dormindo no seu quarto também, onde a ausênsia mais gritante era a da esposa. Será possível que tinham saído assim tão cedo?
O telefone toca na sala. Ele já está chegando perto para atender quando tem um pequeno sobressalto ao ver Janaína se levantando do sofá, que ficava de costas para quem vinha pelo corredor dos quartos.
- As crianças...?
- Na sua mãe, deixei eles lá ontem pra gente ter uma noite só nossa...
O telefone toca insistentemente.
- Estraguei tudo, não foi?
- Ainda temos o fim de semana praticamete inteiro pela frente, e vai ser inesquecível!
Pedro atende o telefone:
- Alô... sim... sim... - diz ele empalidecendo. -Não...
- Querido?
- Não... - as lágrimas surgem.
- Querido... os meninos...?
- NÃO! - grita Pedro e bate o telefone.
Um olhar de Pedro responde a pergunta de Janaína.
Eles se abraçam.
Gritos ecoam do lado de fora da casa.


Não muito longe dali, o vulto entra em seu trabalho. Cumprimenta simpaticamente cada colega por qual passa até chegar ao seu setor. As lembranças da noite anterior ainda estão frescas em sua memória, tudo correra perfeitamente como sempre. Teria alguns dias ainda para planejar a próxima apresentação. Dessa vez ao invés de crianças estava pensando em destrinchar um casal de idosos. Mas não queria pensar nisso agora, tinha muito tempo pra isso pela frente ainda...

Um comentário:

Claudinha ੴ disse...

Ai que medaaaa!
Ando com medo destas coisas, rsrs.
Anselmo, obrigada pela participação nas comemorações do TP! Beijos!